Conto: "Cachinhos aos Ventos"


Por Paulo César de Souza*
Uma tranqüila atitude fazia a manutenção dos riscos adquiridos na trajetória das inocências. No entanto, o coração bateu num ritmo sensual quando ele apreendeu algo, em si, na aparente virilidade. O que fazia ter tantas certezas? Porque, de repente, um extremo desconforto, ereto, cruzou a linha sincrônica de sua corrente sangüínea?
No começo, tratavam-se com cordialidade e admiração. Uma admiração passiva, maquiada por cores intelectuais e beleza física: um deles se vestia como um garoto, falava como um menino e agia como um rapaz. Mas havia um hospedeiro: um homem camuflado naquela aparente adolescência, que escondia nas armaduras medievais crianças sintomáticas, eternas, que faziam emergir a delícia de uma pedofilia. Era um personagem rasgado de um conto de novelas, uma cena escrita para ser vista e vivida; para ele mesmo, sem o ser. Foi então que veio a grande revelação: ele podia ser... sem ser. Na sua respiração, conclui atônito – se é que concluir fosse passível de alguma conclusão – que ele não podia mais olhar para ele de forma simples e descomprometida. Pois o comprometimento canibal era um emaranhado de teias carnívoras que degustavam, deliciosamente, a salada de criancinhas.
Estar envolvido em tal historia é como assistir “Janela Indiscreta” de Hitchcock. Devo atravessar a grande ponte? Olhou através do binóculo e percebe que o rapaz se posicionava nu do outro lado da ponte. Completamente nu! Maravilhosamente nu! Provocação? Não. Sua nudez era rígida como as armaduras e quente como a esperança; e mesmo apesar do distanciamento era possível sentir as batidas do seu coração e ver os arrepios na sua pele branca de neném. Num momento rápido pensou que... ficar ali parado era pecado; olhando através de um binóculo era indiscreto. E aí, então, tomou uma decisão súbita e espontânea de atravessar a ponte. Avançou alguns passos à frente e a ponte rangeu perigosa e felina. Uma pantera. Parou apavorado desligando as lunetas dos seus olhos, sentindo os pelos do asfalto periclitantes sobre os seus pés. Mas um beijo refrescante veio rápido com o vento, apaziguando todo aquele momento feliz e efêmero. Deu mais alguns passos, e furiosa a ponte tremeu, balançando seu corpo frágil, tentando derrubá-lo de sua própria segurança. Um gruído propagou-se com o vento e sobre aquele tremor, segurou uma das mãos num ferro grosso e com a outra elevou o binóculo no olho do sul e viu, contrariando toda aquela concupiscência, cachinhos balançando ao vento, incógnitos. Se perguntasse para si mesmo se deveria atravessar toda aquela ponte; já não fazia nenhum sentido desde que começara a pressentir. O amor havia lhe flagrado numa situação exposta, contundente em fraturas que se propagavam nas estruturas. Quando percebeu, já havia avançado quase a metade do trajeto e em meio a águas revoltas lembrou-se de uma canção.
Foi fácil tirar da armadura o menino para logo em seguida – como numa cirurgia cesariana – dar a luz a um rapaz. Tenebroso era o homem que poderia evoluir, ríspido como uma árvore, de dentro da carcaça de ferro. Pois a batalha era inevitável, fosse ela qual fosse. E em masturbações plenas, um exército de homem passava a guarda na sua frente; mas era sempre a imagem dele que prevalecia na ora do gozo. Aquela compulsividade serena já era o prelúdio de uma deliciosa doença que se instalara nas entranhas da sua imaginação e dos seus sonhos. Estava pronto para guerrilhar e avançar um pouco mais a comprometida ponte. A doença lhe conferia surtos de felicidade e receios momentâneos; aumentando os números de punhetas em qualquer domicílio ou local público, pois sabia que logo em seguida, na ora do gozo, era o seu semblante encaracolado que vinha visitá-lo após a troca da guarda. Passou a busca neste distúrbio anacrônico a presença terna do seu olhar, pernas, coxas, músculos, e a quentura de suas cavernas sanguíneas na ponta dos seus lábios; uma deliciosa prática de tê-lo mais próximo de mim. Poucos poemas, sarados, foram capazes de lhe trazer àquela circunstância em meio a uma ponte preste a ruir, e um rapaz helênico resgatou o poder catastrófico suplantado na sua longa espera: vulcões explodiam, terremotos devastadores, ciclones e ventos feito brisa. Quanto mais ele avançava mais comprometia a estrutura da ponte e a imagem na lente do binóculo aumentava em proporções bem dotadas, deixando-o totalmente embriagado e sem consciência do que estava acontecendo: a separação dos continentes. Uma gaivota, planando no seu ouvido, gritou aborrecida chamando-lhe a atenção. Ele parou obediente e parou também o divisor das águas. O olho nu olhou para o nu que sorria feliz do outro lado da ilha já bem próximo do alcance, e, por alguns instantes, eternos talvez, o mundo todo parou de girar de baixo dos seus próprios pés, de frente dos seus olhos. E uma calmaria invadiu todo o fluxo contínuo de uma transmutação possível de existir que não fosse aquela: a vigente. Parado, já um quarto percorrido, saboreando a brisa na ponte quase destruída, foi de tudo um prazer admirável e tranqüilizador. O menino próximo ali na sua frente, pequeno e oblíquo, lhe pareceu sem sentido, agora, para avançar um pouco mais na fúria de seus desejos. Mergulhou, então, no frenesi daquela liberdade e bem antes que ele pensasse em dar mais alguns passos... sabia agora que qualquer movimento avante estaria comprometendo com toda a estrutura de um planeta inteiro. Era melhor deixar agora esse processo evolutivo de irresponsabilidade a cabo da lei da gravidade, movendo com cautela os continentes sobre a fração segura dos segundos e minutos presente. Afinal de contas, Ele havia se mostrado inteiro para Ele espelho. Nu, completamente...

*Professor de Literatura, escritor, cineasta e pesquisador do Ciclo de Leitura. pcdesouza9@yahoo.com.br (22) 8137-7402

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