"MINHA FAVELA QUERIDA: A PERMANÊNCIA DA ALEGRIA E ENCANTAMENTO EM UMA MOCINHA COM MAIS DE VINTE ANOS DE PALCO" por Alexandre Mate




"Minha embaixada chegou/ Deixa o meu povo passar/ Meu povo pede licença/ pra na batucada desacatar./ Vem vadiar no meu cordão/ Cai na folia meu amor/ Vem esquecer tua tristeza/ Mentindo a natureza/ Sorrindo a tua dor/ Usei o nome da favela/ Na luxuosa academia/ Mas a favela pro doutô/ É morada de malandro/ e não tem nenhum valor. / Não tem doutores na favela/ Mas na favela tem doutores/ O professor se chama bamba/ Medicina na macumba/ Cirurgia lá é bamba./ Minha embaixada chegou."
Assis Valente

Assisti, pela primeira vez, ao espetáculo Minha Favela Querida, no Festival Nacional de Teatro de Vitória (Espírito Santo), em 1993. Do mesmo modo como naquela ocasião, a obra, novamente, arrebatou-me. Puro encantamento; tanto naquele momento como agora, o sentimento de estar indo ao encontro de algo de que faço parte, de algo me que concerne como sujeito histórico-cultural, enraizado em algum e determinado lugar: sensação de pertencimento.

O Brasil é um país de muita gente bamba, e o genial Assis Valente (1909/1911?-1958), deixou isso manifestado em inúmeras obras geniais. Hoje, poucos o conhecem, sabem quem ele foi, entretanto, suas obras, de uma forma ou de outra, fazem parte dos modos de ser de milhões de brasileiros.

O Grupo Sorriso Feliz, de Cabo Frio (RJ), por intermédio de Minha Favela Querida, representa a “Embaixada” de que fala Assis Valente, cuja parte da letra foi aqui apresentada. Na condição de uma espécie de nau (terrestre), o espetáculo navega por entre as vagas de uma favela, inspirada em milhares, ou quiçá milhões delas existentes pelo país. O espetáculo promove aquilo que os gregos chamam de metaphorai, ou, em português: metáfora; isto é, sem sair da poltrona, se nos deixamos levar pela beleza, somos conduzidos, sem sair do lugar, a uma paisagem que encanta e que remete à tristeza de – agora, sim, com certeza – ao espaço de milhões de brasileiros.

Evidentemente, o predomínio do ritmo do samba não nos afasta (e lá estão os ratos, os assassinados, o cão sem dono, o menino eletrocutado, a infância em processo de droga, a repressão policial, as milícias...) da realidade social. A obra não levanta bandeiras, mas, de acordo com seus recursos singulares (o teatro de bonecos), nos encanta e nos confronta com a realidade social: sem proselitismos, tem-se em Minha Favela Querida um exemplo de uma obra que se caracteriza como um experimento estético-social. O melhor, se se puder pensar assim, para adultos e crianças.

A direção do espetáculo é de José Facury, que participou de experiências estéticas no teatro brasileiro surpreendentes, dentre elas, pode ser destacada a respeitadíssima Tempo de Espera, dirigida por Aldo Leite. O roteiro de Minha Favela Querida é de Clarêncio Rodrigues, que segue “direitinho” a estrutura do velho e bom teatro de revista brasileiro, também desconhecido da totalidade das pessoas, incluindo aí também os artistas de teatro. Na estrutura criada por Clarêncio Rodrigues, desfilam os mais diversos tipos do morro, com grande ênfase àqueles egressos da vida musical carioca (lembrando outro grande poeta: “Quem não gosta de samba/ Bom sujeito não é/ É ruim da cabeça/ ou doente do pé).

O espetáculo não tem, do ponto de vista clássico (e também considerando o teatro de revista) um enredo, a não ser a volta da cabrocha para os braços de seu amor (isso se resolve em dois quadros). Entretanto, ele começa a ser apresentado (na condição do antigo compère (compadre em francês), se consegui entender, por Zé Cavaquinho, que é diretor de Harmonia do Unidos da Vila do Sossego. Logo após a apresentação do Mestre, o prólogo de entrada é desenvolvido com ritmistas, passistas, mestre sala e porta bandeira da escola. Depois dessa abertura tradicional, a obra dará passagem ou colocará em revista os tipos mais comuns daquela sociedade (espécie de microcosmo do existente no mundo): a personagem que mais vezes cruza a cena é um trabalhador. Este, leva uma escada em uma das mãos; e, na outra, apetrechos de trabalho; tal recurso busca quebrar o senso comum segundo o qual carioca não trabalha. 


Além do trabalhador, desfilam, nas mais diversas situações, sempre premidos pela dialética entre a violência do contexto e a alegria do viver, em vários quadros rápidos: as crianças desamparadas, entretanto, felizes por conseguirem brincar em espaço tão adverso à infância; os pastores que prometem a redenção em um outro reino, o fanático por futebol (flamenguista, cuja identificação carioca, ligada ao Fla X Flu, não funciona para os paulistas); dois urubus que vão “comer a prima”, oferecida a algum orixá; muitas e deliciosas coplas cantadas e dançadas, por negros sambistas (ou, como eternizou Assis Valente), a “gente bronzeada mostrar seu valor”; homenagens diversas são apresentadas nos quadros. Dentre eles, a sensibilidade do roteirista e do conjunto, não deixaram de fora Noel Rosa, por intermédio da canção cantada por Carmem Miranda em O maior castigo que te dou. O teatro mostra, nos mais diversos detalhes o seu a que veio. Algumas personagens estereotipadas se fazem presentes, mas na sociedade espetacularizada em que vivemos, os minutos de fama e de glória, têm transformado muita gente em estereótipos ambulantes...

A cenografia que ambienta tantas personagens-bonecos – cuja “vida se faz” por meio de impecável manipulação: direta, por fios e por luva: os manipuladores são mestres no ofício -, materializa-se por tratamento primitivo. No cenário tudo é delicado e encantador: até mesmo os ratos que saem do lixão (onde também “presuntos” são jogados).

Minha Favela Querida, exatamente pelo fato de dignizar a linguagem teatral (e não apenas do à teatro de bonecos), caracterizou-se em um grande momento da 26ª edição do Festivale – Festival Nacional de Teatro do Vale do Ribeira. Desse modo, além do cumprimento aos já citados, é fundamental destacar os manipuladores (Clarêncio Rodrigues, Gabriel Bezerra e Ramon Rodrigues), que conseguem “tirar samba do pé dos bonecos” e “rebolado das cadeiras da mulatas”. Então, como se fazia no bom teatro de revista: Oba!

Alexandre Mate é pesquisador, escritor e crítico teatral.

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